quarta-feira, 22 de julho de 2015

Pregos

Há precisos dezessete anos, Alan Davis roteirizou e ilustrou um conto que se tornou bastante emblemático entre a miríade de possibilidades imaginadas durante a trajetória do selo Túnel do Tempo (Elseworld): O Prego. Inspirado no poema homônimo de George Herbert, o quadrinho trazia a conjectura de que um desses cravos de metal furou o pneu da camionete dos Kent e impediu que eles viessem a encontrar o último bebê de uma civilização extinta. 

Sem a concretização desse fato histórico no Universo DC, tudo que acontece a seguir converge para um cenário mais pessimista, inclusive, para a própria Liga da Justiça.

"E assim, um reino foi perdido [...]."
"E assim, [outro] reino foi perdido [...]."
Contudo, esse artifício da inversão de paradigmas e supressão de elementos canônicos não foi uma exclusividade de Davis, na realidade, não foram poucas as equipes criativas que apostaram em “e se(s)” para entregar narrativas fora da zona de conforto da continuidade. Red Son, de Mark Millar, Dave Johnson e Kilian Plunkett, por exemplo, idealiza a conjectura geopolítica de um mundo em que a cápsula de fuga de Kal-El caiu em uma fazenda comunitária da União Soviética, dando um rumo bastante distinto às práticas imperialistas no século XX.
 Ou, quem sabe, o subestimado, Poder Absoluto (Superman/Batman #14-18), de Jeph Loeb e Carlos Pacheco, em que os vilões do século XXXI, Lorde Relâmpago, Rainha Satúrnia e Rei Cósmico, viajam ao passado e alteram a linha do tempo, assassinando tanto os Kent quanto Joe Chill nos momentos que definiriam as vidas de Clark e Bruce. Em paralelo, o trio inviabiliza a Era dos Heróis, exterminando Barry Allen, Hal Jordan, Jonn Jonzz e Arthur Curry, em momentos igualmente cruciais. Criados como irmãos, Clark e Bruce tornam-se déspotas globais de uma utopia em que nada escapa ao seu controle (sumário), sobretudo, os focos de resistência de vigilantes uniformizados.
 E é nessas vãs tentativas dos insurgentes de se livrarem dos dois irmãos que Poder Absoluto fica guardada na memória, em especial destaque, a partir dos confrontos com Oliver Queen; ou com Boston Brand, que se incorpora no Kryptoniano, aproveitando-se de sua vulnerabilidade à magia, só para ser exorcizado e aprisionado pelo Cavaleiro das Trevas a partir de um encantamento da falecida, Zatanna; e, claro, contra uma curiosa versão dos Combatentes da Liberdade¹ capitaneada por Tio Sam e Diana.
 E há também a representação de circunstâncias improváveis como uma “Gotham sem Batman”, na qual Bruce Wayne nunca perdeu seus pais e é de fato o playboy milionário que finge ser no mundo real; ou, quem sabe, na homenagem de Loeb ao clássico de Alan Moore, O Que Aconteceu com o Homem de Aço.

Nascida para ser Pin-Up.
 ¹ Cujo recrutamento reserva momentos surpreendentes como o chamado da stripper Sandra Knight, a Lady Fantasma, ou a passagem em que Sam e a amazona localizam a espaçonave de Abin Sur.
 Liga da Justiça: Deuses e Monstros, dirigido por Sam Liu e escrito por Alan Burnett e Bruce Timm, tal como o Prego de Davis, Red Son de Millar ou o Poder Absoluto de Loeb, aposta também em inversões inusitadas de perspectivas, que acabam entregando, por que não, uma terra paralela intrigante e novinha em folha ao Multiverso DC. Por outro lado, diferente dos correspondentes citados, o desenrolar de Deuses e Monstros traz consigo um panorama em que os alter-egos da Trindade DCnauta nem sequer são os que imaginamos que sejam, trazendo, portanto, uma dinâmica inusitada, pontuada por tons adultos, e muito próxima da liberdade criativa de um trabalho autoral. 

E isso é tudo o que posso dizer sem estragar sua experiência, haja vista que o grande divertimento aqui reside exatamente na associação de conceitos e personagens do universo corriqueiro. 

Portanto, proceda por sua conta e risco

“SUPERMAN” 


O chute no balde começa quando Jor-El é impedido de inserir sua matriz genética na de Lara, o que nas vias normais viria a conceber Kal no shuttle a caminho da Terra. Nessa versão, Zod obsta a consumação do ato num espécime de estupro ideológico, implantando seu material genético naquela genitora. Portanto, o último rebento de Krypton é progênie de Zod e Lara, mas as mudanças não param por aí:

Nascido de uma dedada?
Na minha ótica, a variante mais relevante se dá quando a criança refugiada é encontrada e criada por um casal de imigrantes ilegais mexicanos. Quer dizer, se o Superman original é considerado como o “imigrante definitivo”, em Deuses e Monstros ele é "duplamente definitivo”:

El último hijo.
Batizado como Hernan Guerra, suas origem tanto biológica quanto adotiva passa a repercutir significativamente nas visões de mundo desse Superman que, a propósito, é mais pragmático, cirúrgico e moralmente suscetível a medidas extremas. Hernan seria, portanto, uma versão light de seu genitor:

Nunca um "bebedor de leite®, só puro malte Kryptoniano: Gold Label?
 Antes do lançamento do filme animado, três microepisódios de seis minutos dirigidos por Bruce Timm foram disponibilizados na web, cada qual focado em um dos vértices da referida trinca. O que decorre em “Bomb” é bastante similar ao contexto do antológico “Epilogue”, contudo, com a licença poética do Senhor Guerra

“BATMAN” 


Se pensar direitinho, Kirk Langstrom, o outrora “Morcego-Humano”, parecia mesmo um nome razoável para o vampiro que se autointitula como o Batman. Do mesmo modo que sua contraparte original, a pesquisa de Kirk se dirige a aplicações médicas da fisiologia quiróptera, contudo, nessa história, sugere-se que o personagem sofre de linfoma e o seu objeto de estudo viria para dar um fim ao seu sofrimento. Ledo engano, ao testar a fórmula final em si próprio, o resultado que chega é o de uma condição similar...

...ao do Dr. Michael Morbius?
No seu microepisódio, “Twisted”, Kirk localiza o esconderijo e abatedouro de um assassino(a) serial, enfrentando-o logo em seguida. Em certos aspectos, esse Batman parece um primo carrancudo de Terry McGinnis, sobretudo no layout da indumentária, mas isso é tudo. Kirk é silente e soturno, o que casa totalmente com o modo distante, quase cínico, que Michael C. Hallo “Dexter” em pessoa – imposta sua voz.

Que maravilha de geladeira, hã? Será que tem alguma Sul Americana por aqui?

“MULHER-MARAVILHA” 


De themysciriana, Bekka não tem nada, na verdade, trata-se de uma personagem criada por Jack Kirby no panteão de Novos Deuses do Quarto Mundo. Naquela conjuntura, a personagem era filha de Himoninventor que, ao lado de Metron, criou as Caixas Maternas e Tubos de Explosão – e se insurgia contra a opressão de Darkseid em Apokolips, tendo como principal aliado, Orion, filho do tirano, que mais tarde viria se tornar seu marido. 

Um tanto esquecida da continuidade pelas equipes criativas contemporâneas, em 2007 no arco Tormento (Superman/Batman #37-42), Alan Burnett, roteirista de Deuses e Monstros, reapresentou Bekka num inusitado team-up com Batman, tendo como missão o resgate do Superman de um planeta imaginário conhecido como Tártaro, reduto no qual o Homem de Aço vinha sendo mantido prisioneiro por Desaad.

Com mão boba e Sem mão boba...
Se sem saber de nada o morcego faz estrago, imagine só quando ele souber de tudo...
Faz sentido o design do elmo de Orion...
Durante a missão, ela e Bruce mantêm um caso, mas no seu desfecho, mesmo visivelmente apaixonada pelo Cavaleiro das Trevas, decide regressar ao seu status quo ante, acreditando que o tempo arrefeceria aquela paixão avassaladora. 

Em Deuses e Monstros, para selar a paz entre Nova Gênese e Apokolips, Izaya, o Pai Celestial, negocia o matrimônio de sua neta, Bekka, com Orion. De início, ela esperava um noivo arredio e bruto, mas o breve tempo juntos a fez se afeiçoar pelo mesmo. Porém, no dia do casamento, a verdade vem à tona: tudo não passava de um ardil de Nova Gênese para aniquilar toda a família real apokolipsiana e seus principais tenentes

Sei o que está pensando: “casamento vermelho”, não é?
 Arrependida por ter tomado parte na armadilha, Bekka abandona os seus e decide construir outra vida, bem longe do passado recente. No microepisódio dela, “Big”, nossa “Mulher-Maravilha” nos revela que a melhor maneira de finalizar uma sequência de hit combos, é assumindo a dianteira:
  Em tempo... 

A julgar pela qualidade da trama principal, o sucesso de público e crítica, é bem certo que num futuro próximo voltaremos a ter notícias dessa trindade improvável. Nos quadrinhos, inclusive, foram lançados prelúdios por J. M. DeMatteis e Bruce Timm, como proposta de expansão daquele universo, quais sejam: Superman Fallen, Batman Hunger, Wonder Woman The Dream, Justice League Genesis.

4 comentários:

Unknown disse...

Excelente texto, meu caro Luís Gustavo!Os três microepisódios são excelentes, principalmente o de Superman e o de Batman!

Essa questão do "estupro ideológico" foi uma ideia interessante! Você não acha que a visão de Krypton de Bruce Timm lembra as Hqs de John Byrne?

O visual de Superman (Hernan Guerra) e de Batman (Kirk Langstrom) lembra muito os atores Michael Shannone Christian Bale! Acho que tem uma matéria no site Terra Zero:

http://www.terrazero.com.br/2015/07/review-justice-league-gods-and-monsters/

doggma disse...

Ver a "equipe toda reunida" deu até um estalo no coração. Realmente não economizaram no radicalismo (e no grafismo!!). Os mini-episódios e o longa são diversão elseworld de primeira. Muito legal a recepção rendendo uma continuidade.

Vendo a adoção do Zod Jr. por um casal de coiotes não pude deixar de lembrar do infame - e quase xará - Hitler Hernandez, o Super-Chicano do universo muito doido do Marshal Law (http://comicattack.net/wp-content/uploads/2010/12/godzilla3-002.jpg).

E no bg da Bekka (R.R. Martin's rights reserved), com o Pai Celestial se revelando um canalha sem escrúpulos, me lembrou de sua contraparte Zuras (ah, Kirby Rei danadinho!) no final d'Os Eternos do Neil Gaiman. Ambos com um dark side que assustaria até o Darkseid.

A propósito, um belo recap elseworld esse que você fez. A Liga e o UDC são tão emblemáticos que até as outras editoras não resistem em perpetrar suas versões alternativas.

E de fato, alguns artistas parecem ter nascidos para uma personagem e vice-versa. AH/Power Girl, Dodson/Felicia Hardy, Cho/Shanna, Paquette/Mulher-Bala e, claro, a Lady Fantasma do Daniel Alcuña... como diria o Sérgio Porto, essa é mulher pra 400 talheres.

Ps: com ou sem mão boba naquela capa, o Bats só parece estar fazendo uma coisa atrás da Bekka...

Abraço e uma excelente semana, pessoal!

blogzine disse...

Gostei muito dessa animação, fugiu do lugar comum, uma Liga da Justiça "do mal" ou versões mais sinistras da Trindade. São novos personagens usando os mesmos "arquétipos", nem dá para dizer qual é o favorito.

O cenário, mais sóbrio e contido, também é muito interessante. E Luthor, é claro.

Ansioso pela sequência.

Luiz Gustavo de Sá disse...

Yuri, sim, Bruce Timm está completamente alinhado com o ideário kryptoniano byrneano. Quanto aos visuais dos personagens, confesso que não havia reparado nisso, mas faz todo sentido.

Dogg, eu toparia fácil um pay per view por mais uma leva de microepisódios. Uma série animada com a estrutura de LJSL, então...

"Vendo a adoção do Zod Jr. por um casal de coiotes [...]"

Caso não tenha lido, o DeMatteis fez um belo trabalho ao contar a infância e juventude do Hernan. A inversão de paradigmas não poderia contrastar mais com uma educação kentiana.

"[...] me lembrou de sua contraparte Zuras (ah, Kirby Rei danadinho!) no final d'Os Eternos do Neil Gaiman."

Feliz em saber que não fui o único que curtiu esse trabalho do Gaiman.

"A Liga e o UDC são tão emblemáticos que até as outras editoras não resistem em perpetrar suas versões alternativas."

Só quem não dá bola para a Liga é a Panini, meu amigo. A Liga de Morrison que o diga... até hoje isso tá entalado aqui na garganta!

"[...] alguns artistas parecem ter nascidos para uma personagem e vice-versa."

E não nos esqueçamos de Asa Akir... digo:

http://img.photobucket.com/albums/v294/2thpick/psylocke3.jpg

"[...] o Bats só parece estar fazendo uma coisa atrás da Bekka..."

Vez por outra o Dustin Nguyen "complica" um pouco a vida do Bruce:

http://static.comicvine.com/uploads/original/12/124813/3132983-tumblr_mbqpnel32h1rvl1t8o1_500.png

Reginaldo, gostaria de ver mais aquele "Luthor Metron". Por sinal, achei essa versão dele de LJD&M muito próxima da vista em Red Son. Dificilmente foi coincidência.

Abração.