quinta-feira, 11 de junho de 2015

O Homem Sem DDepressão

Nada poderia me preparar para isso... 
 Mark Waid tem sido tão ousado quanto o pobre diabo em questão, transformando em uma leitura despretensiosa, leve e revigorante um título cujo protagonista, desde sua segunda gênese, sempre teve como mola propulsora suas próprias tragédias pessoais. Mas calma lá! Sei que isso soa como se Matt Murdock estivesse sendo descaracterizado pelo bem da galhofa, contudo, é exatamente o contrário, o que Waid está fazendo é um espécime de agregado de discursos, mezzo Lee, Everett, Kirby, Wally Wood, John Romita, Sr., e Gene Colan; mezzo Miller, Nocenti, Chichester, Smith, Mack, Bendis, Brubaker

Parece estranho, só que, cerca de sessenta edições, três Eisner e um Harvey Awards depois, o caso é que esse pot-pourri de estilos tem funcionado a contento, trazendo à tona uma narrativa que, embora seja clássica, é também ágil e moderna por inovar no trato com os quatro super-sentidos, retirar o Demolidor da Cozinha do Inferno – sua zona de conforto particular – e lançar mão de certos paradigmas muito caros aos super-heróis. 

Vamos por partes:

Nunca – sim, eu disse nunca! – o sistema de ecolocalização de Matt fora investigado e esmiuçado com tanta contundência e imaginação quanto na gestão Waid. De um modo que instila o leitor a fechar os próprios olhos e imaginar-se na pele do personagem, identificando os contrastes do ambiente entre odores, percepções e sons, inovando não apenas enquanto norte estético para as composições gráficas de Marcos Martin, Paolo Rivera e Chris Samnee, como também na concepção de sua inusitada visão de mundo.
 O bromance Murdock/Nelson deixa de lado a irritante birra de Foggy com a vida dupla do amigo, perpetrada por praticamente todos os autores contemporâneos que já tiveram a chance de ficar a frente da revista mensal¹, para alinhá-los finalmente como iguais, amigos que partilham de afinidades superiores a mera compulsão de julgamentos recíprocos. Isso, a propósito, fica evidente desde os primórdios da série, mas ganha outros contornos quando Foggy é diagnosticado com Câncer e sua luta para vencê-lo passa a ser o catalisador de cruzadas pessoais e redescobertas alheias. A sequência reproduzida logo acima é um desses grandes e singelos momentos.
 Se por um lado, desde a Queda de Murdock o sigilo da identidade secreta do Demolidor já havia se tornado algo sensível e sujeito aos humores de Wilson Fisk; do outro, em O Segundo Homem, por Brian Bendis, estabelece-se que Fisk não havia guardado essa informação apenas para si, na realidade, ele a havia compartimentado junto à bandidagem de seu círculo interno. Esse conhecimento, aliás, vira troça entre eles e acaba chegando aos ouvidos errados de Sammy Silke, que o difunde. O resto é história e a parte que coube a Waid foi deixar de lado a negativa plausível de Matt, vestindo em definitivo a camisa do Demolidor

Ao fazê-lo, contudo, acabou sepultando sua carreira jurídica e, por tabela, a de Foggy. Bom, pelo menos no estado de Nova Iorque, o que não o impossibilitaria de atuar em outra circunscrição que já tivera litigado junto à Ordem local. Esse local chama-se São Francisco, Califórnia, e estabelece tanto um recomeço simbólico para o personagem – inclusive, engatilhando sua quarta série nos Estados Unidos –, quanto dinâmicas inéditas na carreira do vigilante. Isto é, Matt e seu alter ego são tão bem recepcionados que alçam ao status de celebridades e, quem diria, “eles” passam a apreciar esse novo estilo de vida. Algo que, por sinal, acaba me remetendo a um “e se” involuntário sobre o rumo que Peter Parker poderia ter tomado sem aquele passe de mágica.
 Por outro aspecto, nem tudo é alegria. Matt, Foggy e Kirsten estão duros, e todo o patrimônio da Nelson & Murdock se esvaiu quando o “gatodo Demolidor saiu definitivamente do "saco". A alternativa se apresenta quando o Homem Sem Medo recebe uma proposta milionária para redigir sua própria autobiografia, o que prontamente é aceita – cabendo a Foggy o cargo de biógrafo – e deve ser o bastante para os tirarem da bancarrota e manter o tratamento caríssimo do amigo canceroso.
 No Brasil acaba de chegar às bancas a edição #7 da série de compilados da Era Waid que a Panini vem publicando desde 2013 e que, oportunamente, dá o pontapé inicial a esse admirável mundo novo californiano (#0-4). Mesmo para quem não comprou nenhum dos seis exemplares anteriores, recomendo a aquisição desse sétimo, pois, além de ser um ótimo ponto de partida, é também um marco na trajetória do personagem que, se Mefisto permitir, deve ecoar por muitos anos. 

¹ O Demolidor nunca foi um personagem cujas atenções mediante sucessos de público e crítica se revertessem em superexposições do personagem. Quer dizer, mesmo com o reconhecimento advindo de diversas premiações na indústria e um seriado celebrado por fãs e neófitos, o super-herói em questão sempre manteve – e mantém ainda – apenas um título mensal, passando ao largo de todo e qualquer reboot, relanch, revamp ou proposta indecorosa. Matt Murdock deveria fundar uma religião

Em tempo:
 Não vejo a hora de curtir essa DDepressão...

4 comentários:

Do Vale disse...

E não é que esse clima funcionou? Quando comprei o 1º encadernado me veio na cabeça aquele início da fase do Karl Kesel que saiu em Marvel 98, mas logo que li a impressão passou.
Agora é ver o que a saída do Mark Waid guarda pro Demolidor.
E pensamentos positivos pra fase do Brubaker sair também seguindo o formato da Bendis (ou não).

blogzine disse...

Capa maravilhosa, cortesia do Sr. Ross.Estou aguardando também o Deluxe do Bendis, está com um lugar reservado na estante.

doggma disse...

O DD da Ann Nocenti também tinha muito desse clima, embora pegasse a saída pela esquerda sombria quase sempre. Fora isso, que eu saiba, nunca houve um resgate da fase jovial pré-Miller tão imersivo quanto esse do Waid.

Em termos de trajetória editorial o Matt é um abençoado. Talvez seja pelo fato de que "nunca foi um personagem cujas atenções mediante sucessos de público e crítica se revertessem em superexposições do personagem". O que, ao meu ver, se traduz para os autores como mais liberdade e exercício de estilo.

Luiz Gustavo de Sá disse...

Do Vale, confesso que a fase Karl Kesel/Cary Nord também passou por minha cabeça. Não sabia, já se fala na saída de Waid? Que pena, eu lhe daria o status de roteirista vitalício do Demolidor sem pensar duas vezes. Quanto a sequência de Brubaker, apostaria minha coleção do Spirit da Abril nisso.

Reginaldo, já garanti meu exemplar na pré-venda da Amazon. Saiu por 70 mangos, será que baixa mais que isso?

Doggma, pois é, né? O Demolidor perambulava pelas calçadas da Cozinha em plena luz do dia... achava estranho isso mesmo na época de SAM, mas é como você bem disse, a tal da "saída pela esquerda".

Paradoxal isso, não? Fazer um sucesso absurdo e ter um só título?! Ai se o Bats fosse desse jeito... :-)