sexta-feira, 5 de junho de 2015

Seja numa palavra ou num olhar...


Filmes de terror e suspense sangrento têm estado fora do meu cardápio há um bom tempo.

No caso do suspense, o problema está na opção pelo torture porn que tomou conta do gênero, de uns quinze anos pra cá. O negócio é chocar as plateias - e tome detalhismo nauseante e eviscerações "criativas". Roteiro? Atuação? Pra quê, né? Vizinho/marido/amigo fofo que se revela psicopata, também, já encheu o saco. Então, eu passo longe.

Com o terror, é diferente. Muitas vezes, boas ideias acabam desperdiçadas, em prol de um deslumbramento por efeitos visuais que, ao invés de assustar, causam riso - ou, pior, sono. Um filme assim só me interessa se ele tem ao menos uma pitada de terror psicológico. Uma lenta descida rumo à perda da sanidade faz estragos muito maiores do que qualquer bichão criado em CGI.

No quesito "criação de clima", The Babadook, (Jennifer Kent, 2014) passa com louvor. Apesar de sofrer com a ruindade dramática do menino Noah Wiseman (a criança mais chata do cinema desde Jake Lloyd, o Anakin Skywalker de Star Wars: A Ameaça Fantasma), o filme tem na boa atuação da australiana Essie Davis um belo trunfo. Sua personagem, Amelia, é uma viúva que não consegue deixar o passado para trás e, por sentir-se culpada pela morte do marido, acaba mimando demais seu chatíssimo filho, Samuel. O menino diz ver monstros o tempo inteiro e seu hobby é construir armas caseiras. (Fosse eu essa mãe, um surdão no escutador de novela dava conta dessas fixações em dois tempos, mas, aí, não teríamos um filme, então, vamos lá...)

Certa noite, o menino (e Amelia odeia que se refiram a Samuel assim, mas ele merece) vai à estante escolher uma história pra que sua mãe leia e volta com um livrão vermelho nas mãos, chamado Senhor Babadook. É a história de um monstro que vive dentro do armário de uma casa e, uma vez que se instale, não é possível livrar-se dele. O livro começa naquela pegada do "amigo diferentão", mas conforme as páginas avançam, as ilustrações vão ficando cada vez mais apavorantes e a intenção do bicho cada vez mais clara. Vale um aplauso pra quem criou o livro do Babadook. É uma autêntico item de pesadelos (e o chilique de Samuel nessa hora me deu vontade de torcer seu pescocinho, e isso sem possessão do Babadook).

Mesmo combatendo a fixação do garoto, a mãe acaba duvidando de seu ceticismo (sic), quando, claro, o monstro começa a se manifestar. Aqui, a diretora Jennifer Kent faz tudo certinho, apelando muito mais ao sugerido do que ao mostrado. Sombras, rangidos, pancadas e uma voz pavorosa vão aos poucos minando a sanidade da pobre mãe - e criando um clima bastante adequado para um filme que, como todo bom terror, deve ser experimentado à noite, em silêncio total.

Apesar do bom desenvolvimento, o filme descamba para um final absolutamente bisonho, que confirma a escrita do livro do Senhor Babadook, mas que parece apressado e descabido. Se era tão fácil domar o bicho, pra quê todo aquele escarcéu? Talvez seja um pecado que não compromete demais a qualidade geral, mas perdeu-se a chance de criar um clássico indie das trevas. Mesmo assim, você pode não querer ir ao banheiro sozinho, depois de assistir a The Babadook. Vai por mim.

3 comentários:

Luwig Sá disse...

Se William Friedkin veio a público para dizer que:

https://twitter.com/williamfriedkin/status/539241120236961792

O que humildes escapistas como nós poderiam dizer logo em seguida?

Babadook não me deixou dormir e, de quebra, transferiu sua atmosfera opressiva para o meu sofá - acredite, fiquei de péssimo humor após assisti-lo. Mas é como você disse, trata-se de um terror psicológico com várias sutilezas e uma delas, inquestionavelmente, foi a atuação de Essie Davis, compondo uma mãe alquebrada e insone (Essie Davis), prestes a deixar o pior de si roubar-lhe o que restava da sanidade. E, o pior (ou melhor?), a entidade em questão nada tinha a ver com isso.

A última vez que vi um trabalho cáustico assim, de tamanha desconstrução humana, foi com Ellen Burstyn em Réquiem para um Sonho, de Darren Aronofsky. Méritos para a diretora australiana¹ Jennifer Kent, que certamente deve ter tirado da atriz as melhores nuances da personagem.

¹Deveriam fazer estudos científicos acercas das propriedades das águas da Austrália e Argentina.

Mas gostaria de discordar um pouco do Senhor Friedkin. Foi ele que engendrou uma das películas mais assustadoras de todos os tempos. E não me refiro àquela que você certamente deve estar imaginando. Falo de:

https://www.youtube.com/watch?v=9hD1BGhD16c

Esse só com cinco ou seis cápsulas de Dormonid...

doggma disse...

A diretora certamente merece todos os méritos pelo tremendo exercício de estilo que promove nesse filme. Minimalismo elevado ao limite máximo antes do total colapso narrativo. Coisa pra poucos, igualmente remetendo ao grande Aronofsky de "Requiem".

Friedkin mirou bem na metáfora. É algo inerente à leitura do filme, sob o risco de perder 80% da graça. O filme é uma visão feminina sobre o horror da maternidade, de se ver de repente como mãe solteira, solitária e exausta, cuja única garantia de segurança (o marido) lhe foi arrancada de forma abrupta e traumática.

Essie esteve incrível mesmo, de tirar o fôlego. Já o moleque, se considerar que a função dele era ser o gatilho para o descontrole emocional da mãe (e conseguiu fazer isso até com o espectador), então eu diria que foi de uma competência ímpar. heh

"Vale um aplauso pra quem criou o livro do Babadook. É uma autêntico item de pesadelos"

Rapaz, se tivesse alguma edição dessa à venda eu compraria na hora! Mesmo amaldiçoado! rs

Luwig, pra aliviar da tensão de "Possuídos" acho que nem com uma overdose de Rivotril...

lendo à bessa disse...

Não sou profundo conhecedor do cinema de terror, mas ao lado de Invocação do Mal, só Babadook se salva dessa safra recente?